sábado, 8 de novembro de 2008

Os domingos e o vento

“Que domingo é hoje?” A primeira vez que um de nós fez essa pergunta, estávamos – eu, Armando, Sérgio e Pimenta – a aproximadamente sete nós de velocidade, mais ou menos às dez da manhã de terça-feira, fazendo a travessia entre Ilhabela e Santos. Estávamos a bordo do Fandango, o veleiro no qual a Equipe Boteco 1 – faria sua primeira participação na Regata Santos-Rio.

Seríamos sete tripulantes, sete estreantes na regata oceânica mais tradicional do Brasil. A história dessa participação começa agora, em uma espécie de diário de bordo.

1º domingo: terça-feira, 21 de outubro
Na verdade, o início foi na segunda à noite, embarcando com o Armando para Ilhabela. Chegamos a São Sebastião às seis da manhã e fomos direto para balsa que nos levaria à ilha. Tempo fechado e muito vento. Leste. Apesar do tempo ruim, vento favorável para a travessia de 60 milhas (mais de 110km) até Santos.

Eu, Armando e Sérgio, saindo de Ilhabela. Foto do Pimenta.
Pimenta já estava a postos no píer da balsa, pescando enquanto nos esperava. Enquanto isso, Sérgio já fazia os últimos preparativos a bordo do Fandango. O objetivo era sair o mais cedo possível para chegar ao Iate Clube de Santos (que fica no Guarujá) com dia claro. Deixamos a poita e motoramos até o final do canal. Pouco mais de 20 minutos.

Velas em pé, o sol apareceu e eu aproveitava para conhecer o barco, entender seu comportamento, suas reações. Durante a viagem, conseguimos manter velocidade média próxima de sete nós. Com o balão em pé - por um bom tempo com armação tri sail -, o barco voava e tivemos pico de 9,6 nós (18km/h).

Sérgio nunca tinha testado o Fandango com armação tri sail. Andando a quase 10 nós, acho que ele gostou...
Na chegada a Santos, velas pra baixo e motor para entrar pelo canal que leva ao maior porto do Brasil e ao clube. “Porta a porta”, 10 horas. Do clube direto para o hotel e o encontro com a presidente para nosso primeiro jantar. Pergunta daqui, pergunta dali, tem um restaurante logo ali. Depois de seis quadras, encontramos as portas fechadas e acabamos voltando para o restaurante que fica em frente ao hotel. Depois de comer, cama.

Por enquanto, a previsão para o final de semana da largada era de vento a favor, variando entre 6 e 8 nós.

2º domingo: quarta-feira, 22 de outubro
Acordei por volta das 9h, com o ronco do Oscar. Ele chegou ao Guarujá às 6h30 e foi direto para a cama. Quando eu e Armando abrimos os olhos, ele já estava dormindo e nós nem o vimos entrar no quarto. Nosso objetivo ao chegar a Santos três dias antes da largada era treinar e nos acostumar o máximo possível com o barco.

Nossa manhã foi meio burocrática: dar entrada no clube, fazer a inscrição, ler a instrução de regatas e conferir todas as exigências. Algumas delas não eram cumpridas pelo Fandango e tratamos de resolvê-las. Liga para o Rio para providenciar alguns itens e outros detalhes, corre na farmácia pra montar o kit de primeiros socorros, acha um capoteiro para fazer uma linha de vida... Enfim, correria total.

Nossa programação para o dia era o treino noturno. Como não achamos um lugar legal para almoçar, resolvemos comer no clube. PQP!!!! A pedida foi bife a cavalo para quase todos. Recebemos um “bife à pônei”... E depois do lauto almoço que não deu nem pra tapar os buracos dos dentes, todos a bordo.

Auto-explicativo (tem hífen?)
Saímos do clube quase às cinco, ainda com muito sol e um calor da porra. Lá fora, merreca. Mesmo assim, com o secretário (eu) e os dois proeiros (Oscar e Pimenta) no barco, começamos a realizar as manobras: camba para um lado, camba pro outro, sobe balão, desce balão, jibe pra lá e pra cá, pilling de genoa. Com dia claro e escuro. Já quase às nove, começou a ameaçar chuva. E como não precisávamos molhar o barco à toa nem arriscar pegar uma gripe, sobe o balão e toca para o clube.

No início do dia, a previsão ainda indicava vento a favor durante todo o final de semana, variando entre 4 e 5 nós. À noite, começamos a enxergar a merreca...

3º domingo: quinta-feira, 23 de outubro
A manhã da véspera da largada nos trouxe mais um tripulante e um monte de outras tarefas. Mas nossa preocupação era o vento. Ou a falta dele. A previsão que vimos enquanto tomávamos café da manhã transformava a ameaça de merreca em certeza. Ao mesmo tempo, nos dava uma esperança: lá fora, longe de terra, uma pequena (muito pequena, na verdade) frente subia a costa e podia nos empurrar para o Rio. Se conseguíssemos estar onde deveríamos na hora certa, teríamos grande chance de brigar até pela vitória.

Igor nos encontrou no clube. Agora só faltavam Humberto e Morcegão. Saímos para treinar logo cedo, pois precisaríamos fazer as compras para abastecer o barco na parte da tarde. Ficou acertado que o jovem estoniano de Campinas faria a secretaria, alternando os turnos comigo. Aproveitei para deixar ele trabalhar bastante e se acostumar com a função. Se todos eram estreantes na regata, o caso do Igor era mais grave, pois só tinha velejado duas vezes na vida. É ou não uma bela maneira de começar de verdade?

Na água, tudo normal e depois de três horas e meia, voltamos para o clube. Da estrada, recebi uma ligação:
- Bom dia meu secretário!
- Cadê você comandante?
- Cambando pra comissão...

Aqui é bom abrir um parêntese antes que vocês me imaginem tomando notas ou sentando no colo do chefe. A secretaria (ou o meio do barco) é de onde desembocam e se regulam todos os cabos do barco, com exceção das escotas.

Paramos para almoçar no boteco na porta do clube. Santa comida da mamãe!!!! Arroz, feijão, salada, ovos, farofa e carne que não acabava mais. Morcegão chegou a bordo da viação La Torre, pouco depois da nossa presidente, coordenadora e única operária da nossa equipe de terra, ClauPenPen. Para encerrar com chave de ouro nossa concentração para a prova, 20 garrafas sobre a mesa.

À tarde, supermercado e abastecimento do barco. À noite, nossa extraordinária com as presenças dos sete tripulantes (Humberto chegou!), Armando (que nos treinou e correu no Viva), La Torre e Helô, Claudia, Clícia e Guta, e Nio. Estávamos prontos.

4º domingo: sexta-feira, 24 de outubro

Igor, Oscar, eu e Pimenta preparando o barco para zarpar. Foto do Jorge Somers.
É hoje!!! Teve gente que dormiu mal. Teve gente que acordou no meio da madrugada, como se já estivesse fazendo turno embarcado... Ansiedade e adrenalina é assim mesmo. Chegamos cedo no clube e encontramos o redivivo Jorge Sommers, que foi nos dar um abraço e deixar sua energia boa. Últimos preparativos, embarque e toca pra linha de largada.

A previsão era a mesma. Muita merreca e toca pra fora pra tentar encontrar aquela pequena frente... A tripulação consultou três sites e ainda confirmou tudo com nosso navegador, que estava afundado em mapas e previsões em sua base de BH.

O início da regata foi quase animador. Andávamos devagar, mas andávamos. Foto do Marcio Finamore.
Largamos com um ventinho até razoável e, com média de quatro nós de velocidade, andamos umas 25 ou 30 milhas. Comandante Sérgio fez questão de que todos a bordo timoneassem pelo menos meia hora, para se acostumar com barco. Fui o último da série e anoiteci no leme. Como gostei da brincadeira, fui ficando até o vento e o dia acabarem. Aí...

5º domingo: sábado, 25 de outubro
Nosso sábado começou, na verdade, quando o vento acabou cerca de uma hora depois do anoitecer de sexta-feira. Como disse, o Sergio fez com que todos timoneassem o barco por, pelo menos, meia hora após a largada. Eu fui o último e anoiteci no leme. Pra mim, tudo era novidade. Nunca velejei no leme em regata. Raramente, voltando para o clube ou indo para a raia. E agora, já estava levando o barco de dia e de noite.

Sinceramente, não fiquei preocupado se estava fazendo bem ou mal, apenas tratei de aproveitar a chance de aprender mais alguma coisa.

Era mais ou menos 9 da noite, quando o vento parou de vez e pedi para alguém me substituir. E se falo que o sábado começou nesse momento é porque ficamos a noite e o dia inteiro praticamente boiando. De vez em quando, conseguíamos velejar por uma ou uma hora e meia, ficando parado por mais três ou quatro.

O sábado amanheceu com o mar parado e as velas murchas.
Alguns momentos podem ilustrar o que aconteceu. Durante a noite, boiávamos de tal maneira e as velas batiam tanto de um lado para o outro que chegamos a baixar a genoa por duas vezes, para poupá-la. A outra curiosidade foi um estranho bate-papo entre a tripulação e um pingüim. Estávamos fritando sob um sol inclemente, sem vento algum que nos desse uma esperança, quando o pobre coitado passou por nós, levantou sua cabeça e nos cumprimentou. Pra quê? De repente, os sete estavam em uma animada conversa, falando fluentemente o pingüinês...

Tibetano, o pingüim com quem conversamos muito sobre o sentido da vida...

Tínhamos a promessa daquela pequena frente que entraria no final da manhã. Mas ela não veio. E depois de passar o dia inteiro praticamente sem vento e sob o sol forte, conseguimos renovar nossas esperanças. Já passava das sete da noite, o dia já começava a escurecer, quando o Pimenta olhou pra trás e disse “acho que vai entrar...”.

Junto com uma brisinha, chevou um chuvisco e algumas ondas. Dava pra ver que as nuvens estavam aceleradas, então era questão de tempo. Começamos a nos organizar. Só três em cima, os outros quatro na cabine. Eu estava no leme outra vez... Casaco, cinto de segurança e lá vamos nós. O vento chegou e o Pimenta, com o GPS em punho, começou a cantar a velocidade: 3,5; 4,2; 4,8; 5,2; 5,5; 5,9; 6,1; 6,4 nós!

Casaco e cinto de segurança para tocar o barco no vento forte e de noite. Esperança de completar a regata durou 10 ou 15 minutos.
Estávamos em contravento e aos poucos o 'Fandanguinho' foi adernando. Da cabine, Morcegão surgiu todo pimpão, pronto para usar pela primeira vez a roupa de tempo que, no Rio, não sai do armário. Quando chegamos aos cinco nós, o batcomandante ia soltando a grande quando o Pimenta gritou “Nããããããããããooooooo Morcegão!!!! Ainda falta muito pra ficar difícil”. Lá embaixo, mais um foi a barla para equilibrar o barco enquanto as ondas iam subindo. Todos pensávamos: “agora vai, vamos chegar no Rio”.

Tudo isso durou dez, talvez 15 minutos. De repente, o vento parou de novo e o céu estava absolutamente estrelado... Foi-se, com o vento, nosso fio de esperança.

6º domingo: domingo, 26 de outubro
Às dez da noite de sábado terminou a reunião. Os sete no deck. Fui voto vencido e ligamos o motor. Depois de pouco mais de 34 horas e 62 milhas percorridas (pouco menos de um terço do percurso), o Fandango ligou o motor. Já se passaram duas semanas e ainda não me conformo em não terminar a travessia, mesmo que não chegássemos dentro do tempo para classificar. Regata tem hora para começar e não tem hora para acabar. Estou frustrado até agora, acho que vou ficar assim até a largada do ano que vem...

Estávamos a 75 milhas da costa (139 km) e motoramos por 14 horas em direção a Angra dos Reis. Tentamos comunicar a desistência imediatamente, mas como o rádio não respondia, só conseguimos fazê-lo às oito da manhã.

Chegando em Angra, contamos com a ajuda dos hermanos.

Por volta do meio dia, na entrada da baía de Angra, ficamos sem combustível e sem vento, mas conseguimos ajuda de um casal de pai e filha, argentinos a bordo do veleiro Paraná. Nos deram dois litros de diesel e foi a conta. O motor morreu na hora de atracarmos no posto de gasolina.

Na marina, arrumamos o barco, tomamos banho, almoçamos e, pelas quatro da tarde, a tripulação se separou. Morcego, Igor, Humberto e este que vos escreve seguiram para o Rio de carro. Sergio, Pimenta e Oscar trouxeram o barco para o Iate Clube, sede do Circuito Rio que disputaríamos no final de semana seguinte.

Elucubrações e outros domingos
No Circuito – felizmente – beliscamos o pódio. Foram mais três domingos especiais. Terminamos em terceiro e, pela terceira vez, o Boteco 1 levou um troféu pra casa. A tripulação do Circuito foi comandada pelo Ricardo ‘Amigo do Lodão’ e formada por Pimenta, Oscar, Lulu (sexta), Morcegão e Alfeu (sábado). Eu também estava lá.

No Circuito Rio, o Fandango finalmente encontrou o vento. Foto da galeria do ICRJ no Picasa.

Primeiro e segundo colocados foram indiscutíveis. E a briga pelo pódio, com Star Treck e Calamar Rio, uma delícia. Apertada até a linha de chegada da última regata. Dessa vez nós ganhamos. Da próxima, quem sabe. Vai importar, sempre, estar satisfeito por velejar quando chegarmos ao píer.

É claro que velejar com esses caras é algo sensacional. Seu Ricardo é, mesmo quando calado, uma aula de vela ambulante. A amizade entre todos é de emocionar. Eu, não tenho do que reclamar. Apesar de não termos terminado a Santos-Rio, aprendi muito. Sérgio, assim como Ricardo, é um grande professor.

Também não posso deixar de agradecer o patrocínio do SuperCarioca.com, o apoio da Arapongas Tecnologia Mecânica e a parceria do projeto Três no Mundo.

Por hora, beijos e abraços a quem de direito. Ano que vem, a largada será no dia 23 de outubro, por volta do meio dia.

2 comentários:

giorgio disse...

Muito bom!

Anônimo disse...

O blog, como sempre, está o máximo. Adoro o teu texto.